sábado, 5 de setembro de 2015

Poeta, por construção

Éramos três, Rosa, Carlos e eu.

Contávamos histórias todos os dias que nos víamos, eu gostava disso, Rosa também. Carlos também, mas acho que Rosa mais; tão bem elaborada num ser, tão bem laboriosa na sua poesia. Ela gostava de fazer poemas com deuses, os deuses da poesia. Citou Poe, Ginsberg, até Vinicius, se você for acreditar no que digo.

Descobri a poesia de Rosa quando fazia minhas voltas matinais, só pra fugir do clichê e, até ir além, pra contracultura da época, fazer uma volta bem vagarosa, sem música ou a identificação [mental] de trabalhador. Eu era um nada, Rosa um tudo, vivia na nona esquerda, primeira direita. Rosa tinha daquele jeito meio generoso de falar nada e encantar, como eu iria saber que ela era assim?! Seus versos eram poesia e, mesmo que em prosa, rimavam com a sintonia do meu encanto. Era um dia comum e vi ela despida de preconceitos escrevendo uma peça, um poema ou sabe-se lá o que.

Em Carlos, eu via vultos de sapiência, algo acima da média quando existente. Carlos era realmente excelente escritor, escrevia tão bem, que chegava a fingir que era dor a dor que deveras sentia, ou qualquer coisa do tipo, porque ele era bom mesmo, verdadeiro poeta. Mas acredito que passar uma mensagem acima da média muito poucas vezes não o tornava necessariamente boa pessoa. É que até o "nada" dele era tudo, esse tinha o dom! Mas desde quando poesia é verdade?! Acho que apenas um vício dele, diferente do que acontecia comigo e com Rosa.

Pra mim, a poesia era tudo, Rosa também pensava isso. Chegou a me escrever uma carta com um acróstico do meu nome, fiquei todo emocionado ao ler:

"Vamos à luta,
Lá onde eles estão,
Alemães ou não
Digam adeus ou usaremos força bruta.
Intensificaremos a batalha,
Machistas não passarão,
Isso é o que eles ouvirão,
Ruindo ao sentir nossa navalha."

Foi diferente de todas as outras vezes, ela me deu esse num final de semana de muita chuva, senti um tom romântico nas suas palavras, acho que estávamos flertando e o clima frio e umedecido intensificava a sensação de perfeição. Sabe, não é sempre que encontramos alguém tão especial, fui acertado com a flecha do mais bondoso cupido. Queria saber seu nome (de cupido) para que Carlos pudesse achar alguém.

Carlos tem mesmo essas crenças estúpidas do sobrenatural, lembro como se fosse ontem, quando num porre, me disse sobre cupidos e eu adotei a ideia pelo simples fato de ser conveniente. Não faz sentido, eu sei, mas os poetas têm disso. Esse é meu amigo, mas fala muitas asneiras, fala demasiadamente de lutas em trincheiras, fala tanto de um tal de anjo, que eu chego a achar ele meio problemático. Acho tudo bem você não acreditar numa mão invisível, mas ele fala de uma ideologia muito atrasada, como se todos pudessem ser iguais.

Bom, já que estou falando dele, sua mãe o chama de Marcos, vai entender! Carlos Marcos, já pensou que esquisito? Eu não tenho nada contra, mas o cara fala muita asneira. Uma vez ele queria fazer sua manifestação e até aí, não tenho problema, mas ele escreveu um manifesto! Eu não acreditei, ainda mais quando ele disse que escreveu junto do tal anjo. Cara, não faz sentido! Mas tudo bem, cada louco com sua loucura, a vida é mesmo louca.

Eu estava envolvido nos círculos literários, sabia a poesia de todos, mesmo assim, só a de Rosa me encantava, não sei, acho que o brilho de seu olhar era o toque final. Não vou mentir, eu era um cara inteligente, de verdade. Sabia tudo de todas aquelas escolas, aqueles pensadores, mas juro que minha tara era a poesia. Uma vez, deixei a caneta fluir e compilei o pensamento do círculo mais próximo. Fiquei famoso, mesmo que sem entender; eles gostavam de tão pouco!

A frase mais marcante foi daquele sem-noção do Léo, "pela primeira vez, uma poesia decente". Ele fazia pra provocar, sei disso, era famosinho e tal, mas vivia me lendo. Eu nem retruquei, só encarei aquilo como o primeiro elogio decente vindo dele. Léo não fazia parte do 'nós', éramos Rosa, Carlos e eu, somente. Escrevi então meus versos que compilavam a arte dos meus próximos:

"Trabalhadores do mundo,
Ou meus caros camaradas,
Bloqueemos quaisquer concepções erradas.
Rebusquemos no fundo
Isso tudo que queríamos dizer
Nesse mundo de opressão.
Calemos as vozes dos delegados,
Aqueles que não nos representam!
Não precisamos de sindicatos corruptos,
Degolaremos aqueles que se opuserem
Ou não seremos dignos da revolução!"

Palmas! Rosa ficou feliz, Carlos também. Quando os pronunciei, todos no sarau aplaudiram de pé, foi um momento único. Pra falar a verdade, foi o momento crucial pra perceber que eu tinha me encontrado. Poeta dos versos verticais, muito original, muito artístico. Idiotas! Eles não tinham entendido a mensagem.

Dias depois, voltando para casa, Rosa e Carlos me abordaram e disseram algumas palavras estranhas. Nunca mais os vi, acho que isso é consequência da poesia. Perdi um grande amigo e um grande amor, agora eu era poeta completo. Ainda hoje, lembro de toda aquela brincadeira, toda aquela arte, toda encenação, acho que nunca mais vim a ser tão feliz quanto naquela época. Foi bonita, fiquei contente.